quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Haiti - 12 de janeiro

Era terça feira, e como em toda terça feira, eu, meus irmãos e minha mãe íamos fazer as compras de casa. Comprávamos o imprescindível para a semana e, como o dinheiro estava apertado, não podíamos usufruir de muito luxo. Quando estávamos quase acabando as compras meu irmão falou - Mãe! Olha só, a lâmpada está balançando -, instantes depois, tudo começou a tremer. Produtos caindo, leite esparramando-se pelo chão, ovos quebrando... De início ninguém se deu conta do que estava acontecendo. Uns falavam no fim do mundo; outros, que estavam bombardeando a ilha. De um jeito ou de outro, foi terrível. As pessoas saíram desesperadas correndo, algumas conseguiram alcançar a saída. Foi aí que o pior aconteceu. O teto começou a cair, tudo veio abaixo, não se via mais nada tamanha a nuvem de poeira que se formou. Tentei, em vão, procurar meus irmãos e minha mãe. Acabei permanecendo em baixo de uma prateleira que ainda restava e fiquei rezando pra que tudo aquilo passasse. Naqueles momentos, só podia distinguir gritos, choro e desespero.
Após a poeira baixar, percebi que tinha permanecido, por sorte, numa área que não tinha sido muito afetada. E havia algumas pessoas - uma grande maioria ferida e todos abalados psicologicamente -. Quando vi que nem minha mãe e nem meus irmãos estavam entrem nós, entrei em desespero. Uma senhora abraçou-me e disse que tudo ficaria bem e que logo encontrariam minha família. Por mais que quisesse acreditar naquela mulher, eu via em seus olhos a desesperança. As primeiras horas foram as mais terríveis: pessoas morrendo, chorando, agonizando-se; umas queriam dar apoio às outras, mas no fundo, todos precisávamos.
Começou, então, a aparecer a fome e a sede. Como estávamos no supermercado, acharam uns mantimentos no meio dos destroços, mas não era o muito. Para não haver racionamento, os mais velhos deixavam de comer para os mais novos resistirem por mais tempo, ninguém sabia até quando ficaríamos sob a terra. As horas passavam correndo e eu não tinha a noção do quanto de tempo já havia passado, mas sabia que estava cada vez ficando mais fraco. Alguns não resistiram a espera e enquanto todos aguardavam somente um milagre para tirarnos de lá, ouvimos vozes vindo de algum lugar sobre os escombros. Alguns vibravam com as poucas energias que ainda lhes restavam, outros diziam uns aos outros que estavam salvos. No meio daquela alegria, fui ficando disperso, não distinguia mais as coisas, via apenas vultos e figuras disformes. Só lembro-me de uma moça dizendo que era para virem me ajudar que eu estava morrendo...
E então tudo passou, não sentia mais dor, sede ou fome. Era tudo claro, muito claro. Não sabia o quê fazer, nem onde ir. Até que ouço uma calma e bela voz que dizia: "Vinde a mim as criancinhas."

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Carta de demissão

No Reino dos Céus, 19 de janeiro de 2010


Prezado Senhor,


Sei que não gostas de notícias minhas – ainda mais depois da última vez que Nos falamos -, peço desculpas por atrapalhar Teu tão precioso tempo. Não Te chateia comigo, nem me puna. Leva em consideração o bom funcionário que fui. Sempre eficaz e fiel a Teu comando. Quero dizer-Te que tomei uma decisão.

Bem, de princípio vou explicar minhas condições e Te informar de certos acontecimentos. Eu já não consigo mais trabalhar sozinho. Já estou velho, trabalhei na época da peste negra, passei pelas duas grande guerras e, hoje, a cada dia que passa há mais pessoas morrendo. Um assassinato aqui. Um conflito lá. Simplesmente não sei mais o significado da palavra folga. Pior é agora que começou a circular por aí um tal de crack. Acabo mal tendo tempo para educar meus filhos. Já sou quase um estranho para eles.
Ah, saudades do tempo em que meu trabalho era valorizado. De quando era temido e respeitado por todos. Agora, já por várias vezes, faço o mesmo serviço duas vezes! Veja se há cabimento. Estes tais de médicos acham que podem ajudar a humanidade com suas maquininhas de choque e remédios milagrosos. Querem Te imitar e Tu, Todo Poderoso, nada fazes. Resta-me ir lá e, novamente, tirar a vida da pobre alma. Fico abatido com isso, vejo o sofrimento da pessoa quando me encontra uma outra vez. Confesso que nem eu gostaria de enfrentar o fim duas vezes.

Já tentei terapia. Conversei com meus amigos. Falei até com minha mãe. E bem, depois da Tua recusa a arranjar-me um ajudante, tomei uma difícil decisão. Vou pedir demissão. Aviso-Te com antecedência para que possa encontrar um substituto antes que descubram o acontecido e comecem a ocorrer abusos por aí. Já havia Te avisado desse risco e nada fizeste, não me sinto nem um pouco culpado. Agora vou ali, São Pedro está me chamando para deixar tudo acertado. Passar bem.

Atenciosamente,

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

O crime

Era noite. Um sujeito pleonástico estava nos arredores dos adjuntos adverbiais. Encontrou, de repente, uma partícula apassivadora. Ele sabia que esse aposto não deveria estar aí. Observou tudo a sua volta, prezando todos os detalhes. Ah - pensou - deve ter sido aquela vernácula que deixou isso aqui. Deixou por isso e resolveu sair. Caminhou por todo o complemento nominal. Por fim, deparando-se com uma antítese, viu um acento circunflexo, resolveu aproveitar para relaxar seu pronome ali. Mas que droga - falou - isto aqui é desconfortável! Acabou sentando no acento diferencial mesmo. Um pouco afastado daí, um artigo indefinido chamou-lhe a atenção. Resolveu averiguar, seguiu a onomatopéia deixada. Chegou, finalmente, defronte um hipérbato. Ficou indeciso entre continuar o caminho ou deixar tudo aquilo de lado. Ah - arrebatou - isso pode até terminar em mesóclise, mas dane-se, irei encontrar esse sujeito oculto! Seguiu pelo monossílabo caminho e estacou. Não podia crer, em meio aquela aglutinação não havia ninguém. O agente da passiva era, na verdade, um sujeito inexistente. Então virou-se e morreu com um objeto direto na cabeça.
As Crônicas de Gelo e Fogo